Luto infantil, criança e morte, temas que nada parecem ter em comum. À primeira vista pode até despertar certo mal estar quando os colocamos na mesma frase. Todavia, por mais que desejemos proteger nossas crianças desse assunto, é inevitável que mais cedo ou mais tarde elas tenham contato com ele. Podemos começar por uma situação bem comum: o bichinho de estimação que morre. Para muitas crianças essa será sua primeira experiência de perda, a primeira vez a depararem-se com a inevitabilidade da morte. Ao longo de seu desenvolvimento, outras perdas irão somar-se a essa: o avô que morre, a tia, o coleguinha da escola que perde o pai… Por mais que desejaríamos impedir, a morte adentra a nossa vida, chega pelas mídias, acontece nos ambientes de trabalho, nas escolas, nas casas, em nossas famílias. E a criança é parte de todo esse sistema, não há como não ser afetada.
Como adultos, é natural que tentemos proteger nossas crianças do sofrimento. Isso é quase instintivo. No entanto, privar as crianças de experiências dolorosas ou frustrações pode não ser o melhor caminho. Cada vez mais venho percebendo o quanto a morte de um familiar próximo gera dúvidas e incertezas quanto a como lidar com a criança nestas situações. E cada vez mais vejo pais optando em não contar para a criança sobre a morte ou então escolhendo não levá-la aos rituais de despedida. “Quero que ele fique só com as lembranças boas”; “Ele é muito pequeno ainda, não vai entender mesmo”; Essas são duas falas muito comuns. O que seria o ideal?
Infelizmente, não há uma resposta objetiva e que dê conta de todos os nossos anseios. Contudo, gostaria de dividir com vocês algumas coisas em que acredito e que a formação em Luto e Perdas vem me ensinando.
Em se tratando da criança, o primeiro passo talvez seja não lhe omitir a morte. Ela tem o direito e a necessidade de saber o que está acontecendo. E, além do mais, ela com certeza irá perceber que algo (muito ruim) está deixando o papai e a mamãe tristes, que algo está diferente e “pesando” no ambiente. Por menor que a criança seja, mesmo um bebê, será capaz de fazer essa leitura do ambiente e constatar que algo não está bem. Que algo foge à normalidade. Quem tem filhos certamente sabe que nada escapa aos seus olhinhos curiosos. Se neste momento não lhes é esclarecido o que está havendo, provavelmente a criança tire suas próprias conclusões sobre a situação. Algumas vezes isso pode ser muito mais prejudicial do que a verdade.
Sabemos que as crianças – principalmente as menores – são bastante egocêntricas. No início de seu desenvolvimento a criança ainda não sabe coordenar seu ponto de vista com o do outro e tem dificuldade de distinguir o que é dela e o que está além dela. É uma fase que, em outras palavras, tudo gira em torno dela, tudo fica centrado nela. Agora voltemos à situação em que não lhes foi revelado sobre a morte de algum familiar. Percebendo que algo de anormal está acontecendo, é possível que a criança, justamente por causa desse egocentrismo, acredite que o fato que estão lhe escondendo tem relação com ela. Lembrem: ela centra as coisas em si. Em suas fantasias poderá chegar a acreditar que a culpa da tristeza que está percebendo é dela. Afinal, se não lhe contam o que está acontecendo, se os pais estão estranhos e a deixando de lado, talvez ela seja culpada pela tristeza deles.
Por mais irracional que isso possa nos parecer, é muito frequente que as crianças cheguem a essa conclusão. Por isso, é sempre importante que os adultos afirmem para a criança que a culpa não é dela. Aí você pode pensar: “Mas é óbvio que a culpa não é dela. Ela sabe disso”. Não, na maioria das vezes para a criança isso não é tão óbvio assim. Ela precisa ouvir do adulto que não é culpada e, de preferência, que isso lhe seja dito com todas as letras.
Outro ponto: a criança é curiosa por natureza. Numa situação de morte, quando não encontra as respostas que procura, dispenderá um longo tempo para achar alguma que lhe satisfaça. Neste processo gastará um tempo valioso em que poderia estar sendo apenas criança. Muitas crianças deixam de brincar, ficam mais sozinhas e reflexivas enquanto buscam entender. Inventar uma história, dizer que fulano foi viajar ou mesmo histórias desencontradas ou contradições de familiares em suas explicações servirão apenas para deixá-la ainda mais confusa e insegura. Quando falarem com a criança sobre a morte que aconteceu é preciso que todos sigam na mesma direção, pautando suas explicações na realidade dos fatos.
Alguns pontos em relação à morte ainda fogem à compreensão infantil, por isso mesmo é importante que os adultos a ajudem a dar sentido à situação. Não são necessárias explicações muito complexas ou a descrição de muitos detalhes acerca da morte. Falar de forma clara e objetiva e responder à medida que a criança for perguntando é o melhor caminho. Provavelmente, após ter sua curiosidade sanada, ao sentir-se segura e tranquila ela voltará a brincar. Crianças, assim como nós, precisam de tempo para assimilar o acontecimento, e elas o fazem por meio da brincadeira. Dificilmente focam sua atenção por muito tempo nesta situação – são bem mais flexíveis que nós adultos – mas é bem possível que mais tarde retomem o assunto, com novos questionamentos, pois conforme vão assimilando o acontecido, outras dúvidas podem surgir.
Muitos adultos evitam demostrar tristeza ou chorar na presença da criança. No entanto, certamente ela irá perceber o olhar triste, o choro escondido. Isso pode deixá-la bastante confusa e ainda passar a mensagem errônea de que, se os pais estão tentando ser “fortes”, ela também precisa ser. O que pode levá-la a futuramente, diante de situações de perda ou outras, passar também a evitar a expressão de suas próprias dores e angústias. Sabemos que o pesar e a tristeza não expressos podem converter-se em diversas dificuldades interpessoais e mesmo levar ao adoecimento físico. Aos pais é indicado que conversem com seus filhos sobre seus próprios sentimentos diante da morte. Será apenas verbalizar o que a criança há muito já percebeu. Certamente ela sentir-se-á muito mais incluída no processo e, apesar da fragilidade dos pais, saberá que continuará sendo amada e cuidada por eles.
É preciso lembrar sempre que as crianças têm conceitos de morte e morrer muito diferentes de nós adultos. Mas, nem por isso, deixarão de entender o que está se passando. Até em torno dos 7 ou 8 anos de idade a criança ainda não tem seu desenvolvimento cognitivo completo, por isso sente mais dificuldade em compreender alguns fatos acerca da morte, como a sua irreversibilidade. Ela ainda acredita que se pode morrer e “desmorrer”, assim como o Pica-Pau do desenho animado. Ao longo dos anos ela irá adquirindo ferramentas que a ajudarão a consolidar o conceito de morte como algo universal e definitivo.
Em se tratando de desenvolvimento infantil, é importante apontar que, dos dois aos quatro anos de idade, mais ou menos, na criança predomina o que chamamos de “pensamento mágico”. Um período em que suas fantasias, desejos e imaginação ficam bastante aflorados. Ela ainda tem dificuldade de diferenciar a fantasia da realidade e seu pensamento é bastante concreto. Isso terá grande influência na sua compreensão da morte. Vejamos: quando alguém muito próximo morre, costumamos dizer à criança que essa pessoa virou uma “estrelinha no céu”. Para a criança no auge do pensamento mágico/fantasioso essa talvez não seja a explicação ideal. Esse tipo de comparação poderá confundi-la fazendo surgir perguntas inusitadas como: “E onde o vovô está quando é dia e não tem estrelas?”. Na literatura sobre o tema, há relatos acerca de crianças que, por acharem o céu lindo, consciente ou inconscientemente tentaram se ferir, encontrar uma forma de morrer para então ir ficar junto do vovô e das outras estrelinhas. Tudo bem, essa analogia – do vovô que “virou estrelinha” – pode até ser usada (e é realmente reconfortante) desde que a criança seja informada de que ele morreu e não voltará. Nesta mesma lógica, justificar a ausência da pessoa morta dizendo, por exemplo, que ela viajou, pode fazer a criança começar a sentir medo de viajar. Afinal, Fulano viajou e nunca mais apareceu… Será que se ela viajar também pode desaparecer?
Outro ponto que merece ser destacado, principalmente pelas dúvidas que sucinta, é a participação ou não da criança nos rituais de despedida. E eu diria: pergunte-lhe se gostaria de participar. Temos certa tendência a tomar as decisões pela criança, e claro, o fazemos com a melhor das intenções. Porém, agindo assim corremos o risco de ignorar suas vontades e até mesmo excluí-la desse momento tão importante na vida familiar. Se ela participa de outras celebrações como casamentos e batizados, por que não participar também do momento de despedida? A morte também é parte do processo de viver e necessita ser tratada com mais naturalidade. Não estou com isso dizendo que precisamos expor a criança a situações extremas, a manifestações muito intensas de sofrimento como geralmente acontece na chegada do corpo ou no sepultamento.
Mas, que possa lhe ser dada a oportunidade de também se despedir de seu ente querido, se esse for seu desejo. Que seu luto possa ser reconhecido e validado. O velório nos proporciona, além da oportunidade da despedida, também um espaço de apoio social e dor compartilhada. Sinaliza o fechamento de um ciclo, um momento importante para nos darmos conta de que aquela morte realmente aconteceu e que, ainda assim, precisamos seguir adiante. Para a criança, os rituais de despedida também tem essa finalidade.
Uma morte na família não nos desestabiliza apenas emocionalmente. A verdade é que diante de um acontecimento tão impactante a vida toda vira uma bagunça. Dependendo de quem é a pessoa que morreu, inclusive nossa rotina poderá precisar de várias alterações. Mudanças de cidade e de escola são bastante comuns após a morte de um dos pais, por exemplo. Podem funcionar inclusive como estratégia para “recomeçar a vida”. Algumas vezes essas mudanças serão necessárias e inevitáveis. Contudo, sempre que for possível, é indicado que a rotina da criança permaneça a mais igual possível: mesma casa, mesmos amigos, mesma escola… Se alguém tiver que fazer mudanças em função da perda, que seja o adulto. Pelo potencial desorganizador que a morte de um genitor sempre tem, é comum que a criança sinta-se bastante insegura e ansiosa, principalmente nas primeiras semanas e meses após o fato. Locais conhecidos, pessoas conhecidas, os mesmos professores e amigos certamente a deixarão mais confiante e podem fazer toda a diferença na elaboração de um luto saudável. Para a criança enlutada, rotina é sinônimo de segurança e continuidade.
Diante da morte de alguém muito próximo da criança, principalmente quando se trata de um dos pais, é comum que se pense em buscar ajuda psicológica para esse filho. Acreditamos que ele é a pessoa mais frágil frente àquela situação e que devemos ajudá-lo. Todavia, na grande maioria das vezes, será mais adequado e eficiente se for o pai sobrevivente a se submeter a uma psicoterapia, antes mesmo da criança. Se pensarmos bem, isso faz bastante sentido. Em primeiro lugar, é necessário que o pai tenha estrutura emocional para dar suporte ao filho. Pouco adiantará a criança iniciar um processo psicoterápico se fora do espaço terapêutico estiver inserida em um ambiente que a desorganiza psiquicamente e que não lhe passa equilíbrio e segurança. Na construção de uma casa precisamos primeiro fortalecer os pilares.
Na elaboração de seu luto o mais importante é que a criança expresse seus sentimentos acerca da perda – inclusive a raiva e a culpa – e que neste processo encontre um espaço seguro de acolhida e validação de seus sentimentos. Idade, desenvolvimento cognitivo, características de personalidade, meio social e cultural em que a criança está inserida terão grande influência na forma como ela vive e elabora suas perdas. Contudo, se ela tiver acesso e oportunidade de vivenciar esse acontecimento tão importante da vida familiar, com certeza terá plena capacidade de elaborar seu luto de forma saudável.
Excelente o seu texto
Muito obrigada, Milena! Que bom que gostou! Fico grata por esse teu retorno. Abraço.
Muito bom. Tinha dúvida a respeito disso.
Muito obrigada, Franciele! Fico feliz que tenha sido útil.Agradeço pelo seu comentário/retorno. Abraço.
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